Postado em 24 de Junho de 2020 às 16h18

Entrevista com Augusto Cury

Especial (28)

“O mundo virou psicótico”

Médico psiquiatra, pesquisador e escritor. Autor de best-sellers publicados em mais de 70 países, mais de 30 milhões de livros vendidos somente no Brasil. Augusto Cury é autor da Teoria da Inteligência Multifocal e idealizador da Escola da Inteligência.

A Teoria da Inteligência Multifocal analisa o processo de construção dos pensamentos e ensina como administrar emoções. Augusto Cury preocupa-se com a saúde coletiva: "O mundo virou psicótico, vive a falta de amor e de empatia que desencadeia o aumento desenfreado da solidão.”

Em entrevista, Cury reforça a necessidade de mudanças na educação mundial: é preciso aprender a gerir emoções e pensamentos.

No livro “O futuro da humanidade: a saga de Marco Polo”, o senhor receita a empatia ou a humanização como fórmula do progresso. O momento atual de extremismo e fanatismo no mundo que projeta clima de ódio representa regressão social?


É uma pergunta muito interessante. Se você acompanhar a história da evolução da sociedade, nós não vamos ver uma linearidade. Tivemos extremismos e também solidariedade. E agora, no século XXI, que nós devemos ter a geração mais livre de todos os tempos, estamos diante da geração mais radical. A nossa consciência passou a ser virtual. Se a consciência é virtual e o mundo digital é virtual, nós expandimos a virtualidade em níveis jamais vistos e geramos uma solidão dramática, sem perceber, no meio das redes sociais. Isso faz você parecer que está tão próximo de todo mundo, mas ao mesmo tempo está bem longe. Essa é uma das causas da explosão de suicídio no mundo. As pessoas estão sós no meio das multidões. Elas não se conectam de maneira concreta e profunda quando estão com seus pais, professores, namorados. Aliás, no namoro, um controla o outro, atrás dos benditos aparelhos virtuais. Se tiver controle, não é amor. Isso é ditadura emocional. Por isso as pessoas não sabem mais amar e estão se sentindo profundamente sós, a tal ponto que estão pensando em morrer e não conseguem falar. Para amar, eu tenho que esvaziar o meu ego para me colocar no lugar do outro e desenvolver empatia, caso contrário eu julgo, aponto falha, elevo o tom de voz. Estou falando de mim e não do outro, e machucando o outro por causa da minha agressividade e ao mesmo tempo criando vários cárceres mentais. O radicalismo é um deles.

Como manter-se são diante disso?

O mundo virou psicótico. Nós estamos adoecendo rápido e coletivamente. Eu tenho feito denúncias em mais de 70 países afirmando que nós temos que mudar a dinâmica, mudar a educação mundial. Da era da informação para a era do EU como gestor da mente humana. O EU tem que ser treinado todo dia e passar por higiene mental. Assim como tomamos banho, nós precisamos tomar banhos emocionais. Eu tenho que impugnar pensamentos perturbadores, senão eles serão registrados no córtex cerebral e não mais deletados. Eu tenho que discordar de sofrimento por antecipação ou de ruminação de perdas, mágoas e frustrações. Eu tenho de perceber que ninguém é obrigado a corresponder minhas expectativas. Quem tem dificuldade de conviver com pessoas lentas? A grande maioria das pessoas. E daí se as pessoas não têm a mesma cognição que a gente? Temos que respeitar a individualidade, respeitar o aluno, não colocá-lo dentro de um currículo, não tentar colocar um paciente dentro da psicanálise, mas colocar a psicanálise dentro do paciente, um currículo dentro do aluno. Psicólogos, psiquiatras, professores devem ser treinados para saberem disso. Os executivos também precisam entender que eles pioram seus colaboradores quando exigem o que eles não podem dar, sem estimulá-los a serem autores de sua própria história.

Como se dá a formação de pensadores? É possível construir pensamentos e controlar a mente?

Sim. No processo de formação de pensadores existem várias habilidades importantes. Pensar antes de agir, empatia, se colocar no lugar do outro, resiliência, capacidade de trabalhar perdas e frustrações, de entender que quem vem sem riscos, triunfa sem glórias. Ninguém consegue brilhar se tiver medo de falhar. Grande parte dos seres humanos não brilha porque não sabe correr riscos. Uma das características também é ter autoestima, ou seja, aprender antes de namorar alguém, a namorar a própria vida. Nós não sabemos ter um caso de amor com nossa própria história. Os melhores profissionais cobram demais de si, não namoram a própria vida. São ótimos para empresas, mas são carrascos de si mesmos. Isso não é autoestima. É uma situação muito séria, não é só brasileira, a humanidade toda está adoecendo de forma rápida e coletiva. Nós precisamos ter uma nova educação, não cartesiana e racionalista, mas emocional, a que celebra acertos e não só aponta falhas. Uma educação para ensinar a gerir as emoções e os pensamentos e aprender a fazer diferença nas relações interpessoais.

É uma educação para a autoestima?

A autoestima é fundamental para que a inteligência global se desenvolva. Antigamente ela era uma característica não valorizada. Pensava-se: autoestima, você tem ou não tem, você desenvolve ou não desenvolve. Mas hoje, nós consideramos uma característica central de uma mente livre e uma emoção saudável. Uma pessoa que não tem autoestima, ela não ousa, ela se afunda na lama do continuísmo, do conformismo e até mesmo do coitadismo, que é uma necessidade neurótica de se achar desprivilegiado, vítima da sociedade, da família e das circunstância psicossociais. Autoestima empodera o EU para ser autor da própria história. Ela faz uma pessoa se tornar mais resiliente. Ao invés de se curvar à dor, ela usa a dor para se construir e não para se destruir. A autoestima, também, nesta sociedade onde o padrão tirânico de beleza é imposto e tem levado apenas 3% das mulheres a se sentirem belas, reverte essa situação. Uma pessoa com autoestima saudável e inteligente vai entender que beleza está nos olhos de quem vê. Beleza não pode ser vendida, comprada ou comparada. Mas, infelizmente, centenas de milhões de pessoas, em destaque mulheres e adolescentes, são massacrados nesta sociedade que tem esses padrões tirânicos. É por isso que há cerca de 70 milhões de pessoas vítimas de transtorno alimentares no mundo. Anorexia, bulimia e vigorexia, representada por pessoas que malham sem nenhum controle nas academias, tomam anabolizantes, uma série de hormônios para ter uma musculatura avantajada, para tentar neutralizar seu complexo de inferioridade e a fragmentação de sua própria autoestima.

Qual o papel dos professores nesta mudança?

É muito importante que todos os professores tenham consciência que educar não é transmitir informações. Educar é provocar a inteligência. É estimular a arte da dúvida para que o aluno possa entender que tudo aquilo que o controla, se for doentio, pode se tornar uma masmorra que vai encarcerá-lo durante toda a sua história. Por exemplo, o complexo de inferioridade ou a timidez. 70% dos jovens estão apresentando baixíssima segurança, estão refletindo uma timidez atroz. Mas como? Nós não estamos na era das redes sociais, onde as pessoas se comunicam mais? Se comunicam virtualmente, não sabem se comunicar olhando nos olhos. É preciso trocar experiência, falar de suas dores, compartilhar os dias mais tristes para que os alunos entendam que não há céu sem tempestades. O professor deve entender que ensinar é provocar, estimular a arte da dúvida para desorganizar tudo aquilo que nos controla, ensinar é transferir o capital das experiências. Por exemplo, falar das nossas lágrimas para que os alunos aprendam a chorar as deles. Falar de alguns fracassos, algumas crises para que eles entendam que ninguém é digno do pódio se não utilizar os seus fracassos, as suas crises para alcançá-lo. Mas no mundo todo os professores se escondem atrás do giz, atrás do seu conhecimento. Raros são os professores que transferem o capital das experiências e entendem que o maior projeto, maior foco educacional não é abarrotar a memória de informações, até porque qualquer computador, por mais medíocre que seja, tem capacidade de armazenamento maior que um ser humano. O maior projeto é estimular um aluno, seja da pré-escola a pós-graduação, incluindo stricto sensu, mestrado ou doutorado, a ser autor da própria história.

Como fazer isso?

A mente é como um fórum, se não há um advogado de defesa para protegê-la, ela vira terra de ninguém. Então, o nosso EU tem de impugnar pensamentos perturbadores, senão eles são registrados e não podem ser mais deletados. A nossa mente tende a discordar e a confrontar emoções fóbicas, tímidas, autopunição, autocobrança, sofrimento por antecipação, porque se nós não o fazemos, não há autoestima, não há um EU líder de si mesmo. A educação se torna estéril. Nós vamos formar meninos com diplomas nas mãos. O que eu quero dizer é que não basta ser professor, tem que ser um formador de pensador. Para ser um pensador, tem que ter consciência crítica. Tem que se colocar no lugar do outro, tem que ver o que as imagens não revelam, tem que desenvolver as pessoas para pensarem com humanidade. Um político também, seja de direita ou de esquerda, que só pensa em sua ideologia é um menino com poder nas mãos. Só vamos ser uma espécie viável se nós aprendermos a pensar como humanidade, a aplaudir os diferentes. Caso contrário, não há autoestima, segurança, autonomia, saúde mental e viabilidade da humanidade.

Ao olhar para o futuro, o senhor é otimista?

Eu sou um otimista realista. Todos os dias eu tenho que trabalhar na minha mente o otimismo, porque se eu olhar para as circunstâncias, eu tendo a ser pessimista. Porque eu vejo as mulheres que representam a parte mais inteligente, solidária e altruísta da humanidade, sendo subjugadas dramaticamente pelo padrão tirânico de beleza. Você já viu gordinhas fazendo um romance em Hollywood? Se tem gordinho, é comédia. Isso é uma discriminação deslavada. Isso registra no córtex cerebral gerando a Síndrome PIB - Padrão Inatingível de Beleza. Sou pessimista quando olho que nós mexemos na caixa preta do funcionamento da mente e não apenas desenvolvemos essa síndrome, mas também a síndrome do pensamento acelerado. Há 15 anos, pensávamos: “vamos chegar na era em que os médicos vão confundir a síndrome do pensamento acelerado com a hiperatividade, com transtorno de déficit de atenção e dar drogas sem necessidade”. Isso já está acontecendo no mundo todo. Apenas 1% é hiperativo, mas por que 80% das crianças estão com os mesmos sintomas? Porque nós aceleramos a construção do pensamento, simulamos os mesmos sintomas e não percebemos que a intoxicação digital, associada à uma série de atividades e de compromissos é um assassinato coletivo das crianças. Elas têm tempo para tudo, mas não têm tempo para terem infância. Isso gerou uma agitação mental sem precedente. Sou pessimista quando vejo essa situação toda, porque me preocupa demais. Mas sou otimista quando olho para o programa que criamos, “Você é Insubstituível”, que é o primeiro programa mundial de gestão de emoção para prevenção de transtornos psíquicos e suicídios. É 100% online, 100% gratuito. Sou otimista quando vejo programas como a Escola da Inteligência que é o primeiro programa da atualidade também de gestão da emoção de crianças e adolescentes que ensina na grade curricular, desde os dois anos até o Ensino Médio essas habilidades. Eu tenho que treinar o meu EU para ser otimista, porque há uma corrente completamente contrária que varre a humanidade e que tem nos tornado um número, um algoritmo e não seres humanos completos e complexos.





 

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