Postado em 13 de Outubro de 2017 às 16h03

Pescador cria projeto em defesa do rio e do futuro da profissão

Resp. Ambiental (35)

Objetivo é promover a conscientização em relação às alterações do meio ambiente e criar soluções a parti r da comunidade.

Reportagem e fotos: Maureci Junior
Vencedor do VIII Prêmio Unochapecó-Caixa de Jornalismo Ambiental

Homem simples, de fala mansa e sorriso fácil. Sob os cabelos grisalhos e a barba vultosa, a pele denuncia os anos de exposição ao sol do Guaíba. Assim apresenta-se Julio Silva de Oliveira – o Bagre – como é conhecido pelos moradores da Vila Chapéu do Sol, no sul de Porto Alegre - RS, o criador do Projeto Pitucanoa. Basta alguns passos ao seu lado pela rua para se notar o carinho que tem da comunidade. No entanto, há uma frase que o faz fechar o sorriso. A voz muda de tom. Com um semblante sério e compenetrado, o velho pescador arregala bem os olhos para dizer algo que parece óbvio, mas pode passar despercebido: “o nosso planeta tá sendo consumido pela ganância”.

Criado a bordo de uma canoa, ajudando seu pai, o velho “Pituca”, a tirar do rio o sustento da família, o pescador viu várias espécies de peixes serem extintas do Guaíba e, com o tempo, entendeu que “se a gente não preservar, hoje, as matrizes e o habitat dos peixes, as próximas gerações não vão ter o que pescar”. Tentando compartilhar essa conscientização entre as pessoas da comunidade, Julio criou um projeto de sustentabilidade e o chamou de Pitucanoa – uma homenagem ao seu pai e à tradicional embarcação de pesca que ele usou para criar os filhos.

Enquanto idosos cuidam das mudas nativas, meninos e meninas, fora do horário de escola, aprendem a conhecer as plantas, as espécies de peixes e a fazer materiais de pesca artesanal. Aprendem a respeitar o pescado e a transformá-lo em alimento. Essa é parte da rotina de quem participa do projeto Pitucanoa, no espaço do Clube Náutico Belém Novo (CNBN), extremo sul da capital gaúcha.

Em dias de tempo bom, passeios de barco servem para que todos conheçam o Lago Guaíba, um patrimônio que, até então, só viam do lado de fora, mas quando entram e descobrem que é seu, passam a sentir que também são responsáveis pelos seus cuidados. E demonstram isso na prática, ajudando na limpeza da orla. “São crianças que poderiam estar na rua, fazendo qualquer outra coisa, mas estão em contato com a natureza, aprendendo a valorizar os recursos do rio”, disserta Julio de Oliveira.

Da pesca ao trabalho comunitário

Revista Servioeste Saúde e Meio Ambiente Da pesca ao trabalho comunitário Há dez anos à frente do projeto, Bagre conta porque deixou de pescar e aceitou trabalhar num clube náutico sediado à beira do Guaíba....

Há dez anos à frente do projeto, Bagre conta porque deixou de pescar e aceitou trabalhar num clube náutico sediado à beira do Guaíba. “Fui trabalhar no clube pra poder tocar o projeto. Não recebia nada, mas queria fazer minha parte. Não podia mais ver os peixes desaparecendo aos poucos e ficar parado”. Indignado, questiona: “Ou vamos esperar acabar de vez, para depois fazer alguma coisa?”.

Julio diz que é imprescindível respeitar o período de desova do peixe. Quanto a isso, acredita que os três meses relativos à piracema (de novembro a janeiro), em que a pesca é proibida no Guaíba, não correspondem ao período total do processo de reprodução nessa região. Segundo ele, algumas espécies de bagre, por exemplo, levam até seis meses para completar este ciclo.

O criador do Pitucanoa entende que é possível parar anualmente por 180 dias a pesca destas espécies no Guaíba, mas defende que isso seja feito sem prejudicar as famílias que dependem dessa atividade. Afinal, algumas colônias de pesca, como a Z4 e a Z5, sobrevivem exclusivamente do bagre, “Não dá para simplesmente proibir a pesca do bagre em uma região que não tem outro peixe, sem dar assistência nenhuma para os trabalhadores”.

De acordo com sugestão do Pitucanoa, a pesca seria paralisada por seis meses no Lago Guaíba, e, durante esse período, os pescadores poderiam utilizar as embarcações em uma atividade alternativa, voltada para a sustentabilidade do próprio Guaíba. Com a experiência de quem conhece na prática as agruras da profissão, Julio entende que esta seria uma forma interessante de se promover o maior engajamento dos pescadores com a preservação das matrizes e a conservação do habitat dos peixes.

O aprendizado que vem do rio

Bagre usa o Projeto para repassar às crianças o aprendizado da atividade fluvial. Com a participação de apoiadores, ensina à meninada a navegação com remos e velas. Durante os passeios pela orla, o grupo aproveita para juntar embalagens plásticas e outros resíduos que se acumulam em pontos específicos do Lago, arrastados pelas correntezas. Após serem recolhidas, essas embalagens são reutilizadas em outra etapa do projeto, quando recebem mudas de árvores nativas. Estas plantas – algumas em extinção – chegam à margem quando a água está baixa, e, nos períodos de cheia, são levadas novamente pela maré.

O pescador orienta as crianças a reconhecerem as espécies e a replantá-las dentro de garrafas pet, tênis, ou outros recipientes que são recolhidos da própria orla do rio. Até agora, o Pitucanoa já resgatou mais de 14 mil mudas, que foram replantadas em outros locais, dentro e fora de Porto Alegre. “Tem mudas valiosas que conseguem crescer em qualquer embalagem que armazene um pouco de húmus. É uma coisa simples de se fazer, mas evita muitas extinções”, defende Julio.

Artesanato no Projeto Pitucanoa

Outra atividade, que é desenvolvida com crianças e idosos, é o artesanato. Com uma pequena faca de remendar redes, o instrutor demonstra como esculpir canoas de pesca em tacos de madeira. A confecção de materiais de pesca artesanal, como redes, tarrafas e espinhéis, também desperta atenção, especialmente dos meninos. Enquanto isso, as meninas aproveitam a tranquilidade ao ar livre e trabalham a criatividade na criação de bijuterias de miçanga.

Os alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Anísio Teixeira participam do Pitucanoa. A bióloga Cynthia Tarragô, professora na Escola, ressalta o valor de algumas atividades que fazem parte do projeto, como a coleta do lixo, o trabalho de conscientização e a revitalização das mudas e da orla do Guaíba: “Poder levar os alunos para verem, de dentro do rio, os efeitos das inundações, por exemplo, é uma das peculiaridades que fazem do Pitucanoa um projeto fundamental na defesa do Guaíba”.

Cynthia, que é uma das coordenadoras do Laboratório de Inteligência do Ambiente Urbano (Liau), entende que o Pitucanoa, pela sua capacidade de sensibilizar em relação ao Guaíba, “deve ser amplamente divulgado, inclusive com o envolvimento das escolas do entorno”. A professora enfatiza também que “o Projeto cumpre importante papel de inclusão social e faz com que os alunos se sintam valorizados”.

“Não dá para simplesmente proibir a pesca do bagre em uma região que não tem outro peixe, sem dar assistência nenhuma para os trabalhadores”

Projeto enfrenta dificuldades Depois de vários anos trabalhando como voluntário, Julio de Oliveira passou a ser remunerado para cuidar do clube onde iniciou o Pitucanoa. O salário dava para fazer o trajeto de oito quilômetros entre sua casa e o ponto de trabalho de ônibus – ao invés da bicicleta – e para ajudar no lanche das crianças. No entanto, em março de 2016, Bagre deixou de prestar serviços ao clube e passou a se dedicar exclusivamente ao Projeto. De lá pra cá – sem a ajuda de custo – encontra dificuldades para dar andamento às atividades. Para seguir em frente, mantendo e aprimorando as atividades originais do Projeto, como artesanato, esportes náuticos e educação ambiental, Julio certificou o Pitucanoa e conseguiu a elaboração de um plano de captação de recursos. Esse programa, porém, depende da aprovação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Porto Alegre (CMDCA), que ocorre mediante a visita de uma comissão. De acordo com o orçamento, um valor inferior a 120 mil reais poderia financiar um programa de um ano do projeto social. Fernanda Kerbes, gerente do CMDCA, garante que o Conselho já visitou o Pitucanoa, mas que, neste dia, não estava havendo atividades no local. Kerbes diz que a visita da comissão ocorre sem aviso prévio: “Como se trata de repasse de dinheiro público, é preciso ter uma série de cuidados, pois pode acontecer de o registro ser solicitado por programas fictícios”, explica. Nos últimos meses, o velho pescador tem encontrado sérias dificuldades para tocar o projeto. A ausência de recursos básicos, como dinheiro para o seu próprio transporte e para as refeições das crianças, por exemplo, está atravancando o andamento do Pitucanoa. Nos dias em que consegue a ajuda da comunidade, com amigos ou familiares, Bagre realiza o trabalho social com as crianças e idosos. Mas, quando isso não acontece, o Projeto fica parado. Na esperança de que a próxima visita do Conselho, por sorte, o encontre em atividade. O Lago Guaíba e as crianças da zona sul agradeceriam.

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