Postado em 29 de Maio de 2020 às 16h20

Os perigos dos cigarros eletrônicos

Especial (28)

Brasil tem casos suspeitos de doenças pulmonares provocadas pelo uso dos dispositivos. Nos Estados Unidos, o assunto é tratado como epidemia

Eles não causam mau hálito, não espalham bitucas, não possuem mau cheiro e vendem promessas tentadoras: a de serem menos nocivos à saúde e até uma alternativa para largar o vício. Este marketing da indústria do tabaco tem colocado os cigarros eletrônicos, também chamados de vaporizadores, na lista de desejos de muitos fumantes e despertado atenção em todo o mundo, especialmente do público jovem, alvo conectado às inovações. 

Diferentemente da versão tradicional de papel, que queima por combustão, o modelo funciona à base de vaporização. O dispositivo contém um líquido que, ao ser aquecido, gera o vapor aspirado e exalado pelo usuário. Há quatro gerações de modelos, que vão desde o mais simples que imita o cigarro tradicional, até o mais moderno, em formato de pendrive, que permite trocar cartuchos, escolher o sabor, dosar a potência, quantidade de vapor e a temperatura. Também há versões com e sem nicotina.

É este método de vaporização que faz os fabricantes alegarem que há menos prejuízos aos fumantes em relação aos cigarros convencionais. Porém, não é o que pensa a comunidade médica, que faz um alerta: “não existe cigarro saudável em nenhum lugar no mundo”.

No Brasil, a falta de estudos toxicológicos e testes científicos específicos que comprovem reais benefícios dos cigarros eletrônicos fez com que a Agência Nacional de vigilância Sanitária (Anvisa) proibisse, por meio da Resolução 46/2009, a comercialização, a importação e a propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar (DEF), abrangendo cigarros eletrônicos, vaporizadores e cigarros de tabaco aquecido. De acordo com a Agência, “não há comprovação de que os DEF possam ser substitutos do cigarro, cigarrilha, charuto, cachimbo, ou uma alternativa ao tratamento da cessação do tabagismo”.

A posição da Anvisa tomada há 10 anos permanece e revela avanços nos estudos da Agência sobre os riscos provocados à saúde. O problema, é que, apesar da comercialização ser proibida, a própria Anvisa admite que o consumo destes dispositivos tem crescido no Brasil, por meio da venda ilegal, especialmente na internet. Denúncias feitas à Agência já resultaram na desativação de 600 sites que ofertam ilegalmente os produtos no País. A determinação da Anvisa, porém, não tem força de lei sobre o consumo, por isso, não há restrições aos usuários individuais.

“Em caso de irregularidades, tais como a comercialização, a propaganda e a importação ilegal desses produtos, denúncias podem ser feitas por meio dos canais de atendimento da Anvisa”, afirma a Agência.

Riscos à saúde

O alerta dos médicos sobre os riscos dos cigarros eletrônicos à saúde tem respaldo nas investigações e atuais descobertas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos. Por lá, a comercialização dos vaporizadores ainda é livre e o mercado já conta com mais de 9 milhões de vapers, como são conhecidos os adeptos dos dispositivos eletrônicos de fumar.

Após um surto de internações, que somou 2,2 mil casos de danos pulmonares e 48 mortes no ano passado, relacionadas aos cigarros eletrônicos, um estudo do CDC investigou as amostras biológicas dos pacientes e encontrou no material acetato de vitamina E, substância química, e tetraidrocanabinol (THC), princípio ativo responsável pelos efeitos psicotrópicos da maconha. O acetato de vitamina E, segundo os pesquisadores, é um produto químico de textura pegajosa e oleosa, que ao ser inalado se adere ao tecido pulmonar. Ele é utilizado como componente para a fabricação de produtos de vaporização ilegais que contêm THC. Ambas as substâncias entraram na lista dos possíveis causadores das internações e mortes. Os pesquisadores não descartam, porém, a presença de outras substâncias químicas.

A descoberta dos pesquisadores alertou os americanos e fez alguns estados reverem sua legislação sobre o produto. Por medida de segurança e por entender que o problema já alcançou proporções “epidêmicas”, os estados de Michigan e Nova York proibiram a venda de modelos com sabor, segmento que representa 80% do total. Outros, como Massachusetts, estenderam a restrição a todo e qualquer dispositivo eletrônico.

Para o pneumologista, presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da Associação Médica Brasileira (AMB), Alberto Araújo, as descobertas americanas acendem o alerta no Brasil, onde já há um movimento para liberação dos cigarros eletrônicos. Segundo ele, mesmo com a comercialização proibida, o País, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), já registou três casos suspeitos de EVALI (sigla da doença inflamatória pulmonar atribuída ao uso de cigarros eletrônicos e produtos para vaping).

“Um cartucho do cigarro eletrônico equivale a 15 a 20 cigarros convencionais. A nicotina líquida concentrada pode chegar de 3% a 5%, quando no convencional é 1%. A nicotina é mais concentrada nestes produtos. Em uma semana, é possível inalar o equivalente a uma maço de cigarro”, alerta Araújo ao ressaltar a preocupação dos médicos brasileiros sobre o assunto.

“Tem modelos que permitem que o consumidor maneje a carga do produto, a quantidade de nicotina e demais substâncias. Já temos dispositivos com mais de 8.000 sabores! Porém, não é o sabor que está sendo consumido, são subprodutos tóxicos liberados pelo vapor que causam reações do aparelho respiratório. Causam doenças pulmonares porque, no momento que é aquecida, qualquer matéria viva gera produtos químicos prejudiciais à saúde. Não é água que vaporiza, é nicotina, é THC, é acetato de vitamina E ou outra substancia tóxica. Isso aumenta em 40% a chance de asma e causa sintomas cardiovasculares. Não existe no mundo cigarro saudável."

O que diz a Anvisa

No estudo Cigarros eletrônicos: o que sabemos, de 2016, a Anvisa compilou pesquisas na área, analisou os diferentes dispositivos e fez observações sobre sua composição. De acordo com o documento, a maioria dos produtos disponíveis atualmente no mercado não possuem um padrão de controle e há, claramente, a presença de substâncias tóxicas.

“Ao serem aquecidos, os DEF liberam o vapor líquido, parecido com a fumaça do cigarro regular, contendo nicotina disponibilizada em uma infinidade de sabores, além de outras substâncias. Ao tragar, os vapers absorvem os vapores gerados a partir de soluções que contêm solventes, além de várias concentrações de nicotina, água, aromatizantes e inúmeros outros aditivos. Os solventes mais populares usados são a glicerina (geralmente de origem vegetal) e o propilenoglicol. Tanto os solventes com glicerina quanto os com propilenoglicol demonstraram decompor-se a altas temperaturas, gerando compostos carbonílicos de baixo peso molecular, como o formaldeído, o acetaldeído, a acroleína e a acetona. Essas substâncias foram encontradas em teores até 450 vezes menores que as encontradas em cigarros regulares. Por outro lado, essas mesmas substâncias são classificadas como citotóxicas, carcinogênicas, irritantes, causadoras do enfisema pulmonar e de dermatite”.

Para o pneumologista da AMB, Alberto Araújo, não há dúvidas de que os cigarros eletrônicos são prejudiciais à saúde. “A indústria do tabaco diz que é menos nocivo, que não tem nicotina, que não vicia. Tem nicotina, causa dependência, tem risco de doenças pulmonares e cardiovasculares. Esses produtos foram feitos para tornar as pessoas dependentes. Nos EUA, de cada 100 jovens que estão no ensino médio, 27 já fumam algum tipo de cigarro eletrônico e boa parte deles nem sequer sabe que tem nicotina. É uma epidemia! É muito sério”.

Jovens são o alvo

A Associação Médica Brasileira (AMB) apoia a proibição dos cigarros no Brasil pela Anvisa e afirma que a medida é fundamental para proteger a população, especialmente a jovem. De acordo com a AMB, já há campanhas agressivas no Brasil para atrair consumidores já identificados pela indústria do tabaco.

“O tabagismo clássico, tradicional, começa em 80% das pessoas antes dos 20 anos. A isca é jogada para eles. A indústria não faz propaganda para adulto, porque depois que vicia, é difícil largar. Temos no Brasil 600 mil jovens entre 12 e 24 anos, com um grupo já experimentado cigarros eletrônicos e tornando-se dependente. Ou seja, eles já identificaram o consumidor. É o jovem de classe média, classe alta, porque são produtos mais caros”, sublinha o presidente da Comissão de Combate ao Tabagismo da AMB, Alberto Araújo.

A preocupação dos médicos e a grande crítica estão na desinformação da população por parte da indústria. Segundo a AMB, caso o Brasil não frear a entrada de cigarros eletrônicos ilegais ou chegar a liberar a comercialização, o País pode perder a conquista recente da redução do número de fumantes.

“Nós precisamos denunciar, nos preocupar, porque viemos de uma conquista muito importante: menos de 10% da população (9,3%) com menos de 20 anos é fumante. A gente corre o risco de voltar a normalizar o consumo de tabaco no Brasil, que já foi de 34,8% há 30 anos. Tem o risco de quem parou voltar a fumar este produto ou quem nunca fumou começar a fumar, porque acha que não é prejudicial”.

Usos no mundo


O estudo feito pela Anvisa sobre os cigarros eletrônicos aponta que não há um consenso em relação às políticas públicas de saúde referentes aos dispositivos eletrônicos de fumar (DEF) pelo mundo. Há países que aceitam os produtos como medicamentos, inclusive.

Na Noruega, a venda e a importação dos DEF são proibidas. A comercialização desses produtos também é proibida na Argentina e na Colômbia. A Austrália não apoia o uso dos DEF e não os preconiza como tratamento. Em Singapura, o uso e a venda são proibidos. O Canadá emitiu um alerta para que a população local não usasse cigarros eletrônicos por não terem sido analisados em relação aos quesitos de segurança, eficácia e qualidade. Na Bélgica, em Malta e na Eslováquia, seu uso é proibido em local público e fechado. Cigarros eletrônicos são proibidos na Lituânia em qualquer apresentação e teor de nicotina.

Os cigarros eletrônicos são considerados medicamentos nos seguintes países: Áustria,
Dinamarca, Estônia, Alemanha, Hungria, Portugal, Romênia, Eslováquia e Suécia. A Finlândia
proíbe os anúncios, mas os DEF são considerados medicamentos. A Nova Zelândia tem uma
regulação parcial, ou seja, depende da forma como os DEF são colocados à venda pelo fornecedor, por exemplo, para uso terapêutico.

Os DEF estão sujeitos à legislação de segurança de produtos existentes na Bulgária,
República Checa, Itália, Letônia, Eslovênia, Espanha e em Chipre. Em grande parte da China, a venda e o uso são permitidos. A Itália permite o uso e a venda de apenas uma marca aprovada. 

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