Postado em 18 de Dezembro de 2019 às 14h37

A vida em um planeta paralelo

Especial (28)

Foto: Mônica Letícia Sperandio Giacomini

  • Revista Servioeste Saúde e Meio Ambiente -
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Transtorno do Espectro Autista (TEA) atinge 1% da população mundial e um a cada 59 brasileiros. Famílias escrevem cartas para a Revista e contam como lidam com o autismo que desafia a medicina 

Keli Magri


Gabriel, seis anos, é carinhoso, inteligente e curioso, mas não fala. Brinca de forma diferente com os brinquedos. Pedro, aos três, já domina os números e sabe ler e escrever, inclusive em outros idiomas. Nicholas, que não falava nem brincava aos dois anos de idade, hoje aos seis é um tagarela e adora beijos e abraços. Alice, cinco, desde um ano e quatro meses divide sua infância entre brinquedos e terapias. Diogo Luiz, 17, toma dois tipos de medicamentos e faz psicoterapia para superar a dificuldade de socializar. Kauana, 19, encontrou na escrita uma forma para organizar e demonstrar seus sentimentos diferentes. Jeferson, 28, completou o ensino médio, mora com os pais e toma medicação para controlar a ansiedade.

Todas essas histórias tem algo em comum. Todas elas foram diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), nome científico para o autismo, transtorno mental marcado pela dificuldade de comunicação, interação e perturbações do desenvolvimento neurológico. Apesar de os sintomas serem conhecidos, a ciência ainda não conseguiu desvendar as causas do transtorno, tampouco apontar a cura.

O que se sabe é que estamos diante de pessoas diferentes, que têm dificuldade de fantasiar e de abranger o lúdico. Se são causas genéticas ou hereditárias, em menor ou maior grau, a medicina ainda busca explicar, porém as reações à nossa maneira clássica de ver o mundo não deixam dúvidas: são pessoas que vivem uma realidade diferente, como se estivessem em um “planeta paralelo”. De acordo com a Associação Brasileira de Autismo (Abra), este “planeta” compreende um universo de 4 milhões de brasileiros, ou, um caso a cada 59 pessoas.

“O autismo é um transtorno mental que tem basicamente três pilares que se alteram. Primeiro é a dificuldade de comunicação da criança. Segundo, a dificuldade de interação com o mundo que essa criança tem. Terceiro, a criança usa a imaginação de uma maneira toda especial. É uma criança que é muito introspectiva, que se preocupa com detalhes, com pequenos objetos, com certos movimentos. É uma criança que costuma ter uma característica de movimentos repetitivos. Ela insiste na mesma ideia”, detalha o pediatra geral e emergencista da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Marcello Pedreira, ao ressaltar as variações do transtorno que dificultam o diagnóstico preciso.

“Às vezes é difícil diagnosticar o autismo, mas a gente sempre chama a atenção dos pais para ficarem atentos a qualquer dificuldade que os filhos têm de se comunicar ou de interagir com o meio, por exemplo, aquela criança que não te olha nos olhos, mesmo dentro da família. Ela não encara as pessoas, uma criança de cabeça baixa, que demora para falar e quando fala você percebe que ela não tenta se comunicar, não é uma criança que interage, que brinca com jogos de faz de conta. É uma criança fechada, você nota isso. Então esses sintomas nos levam a pensar que podemos estar diante de uma criança autista”.

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Do retardo mental a inteligência privilegiada

Essas diferenças na acentuação do transtorno, apesar de dificultarem ou retardarem em muitos casos o diagnóstico, por outro lado, são determinantes para o tratamento. São elas que vão indicar qual caminho a família e os médicos devem seguir.

“Tem crianças autistas que praticamente não falam, só balbuciam algumas palavras. Porém, tem, pelo contrário, crianças que falam, conversam, têm vocabulário completo, mas ainda assim têm dificuldade de comunicar. Você tem desde autista que tem um retardo mental importante até o que tem uma inteligência privilegiada. O que eu quero dizer é que o autismo varia muito de intensidade, não é como diagnosticar uma criança gripada, que você sabe que ela vai ter espirro, tosse e febre”, ressalta o pediatra.

Um tipo de espectro autista é a Síndrome de Asperger, que lembra muito o superdotado. São pessoas com inteligência acima da média, que se comunicam muito bem, mas têm pensamento dirigido e dificuldades de interação.

“Na infância, é uma criança que prefere ficar isolada, não é uma criança que transmite empatia, é uma criança que, por exemplo, fala sobre assuntos absolutamente adultos, com vocabulário adulto, que conhece tudo sobre informática, astronomia, carros, as capitais do mundo inteiro... São variações que lembram muito o superdotado”, detalha Pedreira.

Segundo dados dos centros para o Controle e Prevenção de Doenças do governo dos Estados Unidos, cerca de 1% da população mundial tem algum tipo de TEA. A maioria, meninos, cuja incidência do transtorno é quatro vezes maior. A Síndrome de Asperger é oito vezes maior nos meninos que nas meninas. Os porquês, no entanto, ainda são uma incógnita.

“Não se sabe o porquê e isso é mais um motivo para desconfiar de que a característica genética é relevante”, acentua Pedreira.

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Tratamento é cognitivo

E não é só o diagnóstico o ponto comum das histórias relatadas. As famílias destas crianças enfrentaram a falta de informação, a dificuldade de compreender o mundo paralelo dos filhos e, principalmente, lutam contra o preconceito que reage às diferenças.

“Nestes anos de luta, passamos por situações como a de ninguém querer atendê-lo em meio a uma crise, de ouvirmos que convulsionar é normal, que é só esperar passar, que ele era apenas mimado e sem limites e que nós estávamos exagerando”, contam os pais de Nicholas de Moura Oliveira, diagnosticado com autismo aos dois anos.

“Ela manifestava comportamentos que para nós pareciam birras”, relatam também os pais de Kauana Brighenti, diagnosticada somente aos 13.

Não era birra, não era “mimimi”, não era exagero. Mas essa desinformação é hoje um empecilho para o tratamento do transtorno que requer diagnóstico precoce para melhores resultados.

“Quanto mais precoce melhor. Tem muitas pessoas que ou não são diagnosticadas ou são diagnosticadas depois dos 20, 30 anos. E aí, na verdade, a vida que perdeu foi muito grande. Poderia ter sido tratada e viver melhor”, sublinha o pediatra Marcello Pedreira ao destacar que o diagnóstico já é possível antes mesmo dos três anos.

“A partir de um ano e meio, é preciso prestar atenção no comportamento da criança (dificuldade em fixar o olhar, desinteresse por brinquedos), porque o autismo pode ser diagnosticado antes dos três anos, é perfeitamente viável, embora seja mais difícil porque a criança ainda está na fase de desenvolver a linguagem e o pensamento. Na maioria das vezes só começa a cair a ficha quando a criança começa a interagir, conviver com a sociedade e os comportamentos começam a chamar atenção. Portanto, quanto mais cedo você desconfiar de algumas coisas, converse com o pediatra”.

Foi assim com o pequeno Pedro Arthur Barcelos Menusi, que depois de um ano e oito meses, passou a apresentar regressões na fala e a não responder estímulos visuais e auditivos. Foi a partir do momento que ele começou a frequentar a escola, a interagir, que os pais perceberam que se tratava de autismo.

“Não tem como a gente prevenir, nem como prever se a criança vai ser autista ou não. Eu falo criança porque tem muitas vezes criança que pode passar lotado e só vai fazer o diagnóstico de autismo mais pra frente. Por isso hoje a gente orienta professores a prestarem atenção nas crianças, porque muitas vezes a família pode não perceber e se percebe, tem também aquela defesa natural e custa a acreditar”.

Feito o diagnóstico, começa a fase do tratamento, que é cognitivo, comportamental. É neste ponto que inicia a luta da família para tentar compreender o universo em que o filho vive. E ela tem um papel fundamental nos resultados, como enfatiza Pedreira.

“Uma criança autista deve ser uma criança estimulada da melhor maneira e deve conviver com a sociedade da maneira mais natural possível. As pessoas devem tentar entender essa dificuldade e tentar trazer a criança para a realidade. Temos bons resultados em relação a isso. Tratar com a máxima naturalidade e tentar entender as limitações da pessoa. Se seu filho convive com uma criança autista, tente entender como o seu filho pode conviver de maneira melhor, como a gente pode tentar ajudar essa criança a se recolocar no mundo. Esse é o principal, focar na qualidade de vida da criança e da família. Eliminar essa história de vitimismo ou o isolamento da criança”. 

Foto: Victor Lacerda

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Lidando com o transtorno em casa

À pedido da Revista Servioeste, sete famílias escreveram cartas à redação para falar sobre os desafios, as dificuldades e as conquistas dentro de casa no tratamento dos filhos autistas. As cartas ao longo da reportagem relatam desde a descoberta até as pequenas vitórias diárias.

São sete histórias diferentes de crianças e jovens de diversas idades, mas com relatos em comum: a falta de informação sobre o transtorno, o despreparo em muitas ocasiões e o preconceito são barreiras para lidar com o TEA.

Adriana Migott é mãe solo da Alice, 5 anos, diagnosticada com autismo ainda bebê, um ano e quatro meses. Ela aprendeu a superar o medo e viu a filha avançar no tratamento devido ao diagnóstico precoce.

“Ter encarado a situação desde muito cedo garantiu a ela o aproveitamento da melhor janela de plasticidade cerebral, que ocorre na primeira infância”, conta Adriana ao afirmar que ser aceita dentro de sua diversidade é fundamental para uma criança com deficiência.

“É um exercício de cidadania”.

É o que também defendem Sandra Canal e Lauri Alves de Borba, pais de Jeferson, 28 anos, diagnosticado aos 9, depois de as professoras perceberem em sala de aula a possibilidade do transtorno devido à dificuldade de leitura. Jeferson completou o ensino médio em escola pública, sem atendimento especializado e hoje, apesar das dificuldades, não toma medicamentos, frequenta o serviço público de atenção psicossocial, faz artesanato e pilates. A maior dificuldade, segundo a mãe Sandra, foi entender a complexidade do transtorno para poder ajudá-lo.

“Por não saber, não ter orientação ou algo que me ajudasse a ajudá-lo, foram horas de superproteção. Eu encarava o mundo para meu filho não ser discriminado. Mas se hoje alguém me perguntasse se eu o teria de novo, minha resposta seria sempre sim”.

Foi também por meio da escola que os pais de Diogo Luiz, 17, Izamara Bastos e Girlei Corrêa, descobriram o mundo do autismo. Eles começaram a investigar o comportamento diferente do filho, que aos 7 anos, na primeira série, não interagia em sala e se incomodava com o barulho. Os pais contam que tiveram dificuldades em aceitar o diagnóstico, mas encontram ajuda em grupos de apoio e no próprio tratamento do filho. Hoje, Diogo Luiz ainda tem dificuldades em socializar, porém o atendimento psicológico e a medicação fazem com que ele tenha uma rotina “normal” de adolescente.

“A sociedade precisa evoluir e entender que todo o autista é um ser humano”, escrevem os pais.

Alexandre Pereira e Simone Reis mergulham no “mundinho singular” do filho Gabriel desde seu primeiro ano e 11 meses e iniciaram uma busca por mais informações e melhor adaptação ao novo universo. Gabriel tem 6 anos e está começando a falar. O esforço dos pais é uma receita para os demais saberem lidar com o transtorno.

“Nos esforçamos para equilibrar tudo, sem exagerar na proteção, permitindo que ele desenvolva mais autonomia e plenitude no seu dia a dia”.
 

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Os avanços da medicina

Cientistas do mundo inteiro ainda não conseguiram desvendar as causas do Transtorno do Espectro Autista (TEA) e, como não se trata de uma doença, não há uma cura.

Os avanços recentes apontam que o transplante da flora intestinal da criança pode melhorar quadros de autismo. A pesquisa, publicada na revista científica Scientific Reports observou que o conjunto de bactérias (microbioma) presentes no intestino pode ter relação com a manifestação dos sinais e sintomas de autismo. Neste caso, por meio do transplante fecal, seria possível restaurar ou alterar a flora intestinal dos pacientes, reduzindo alterações, como as diarreias e sensibilidades alimentares.

“A flora intestinal é super importante para o desenvolvimento da criança. O estudo busca ver se criança com autismo tem uma flora intestinal diferente da sem autismo. Se tiver, o passo seguinte é poder afirmar que se podemos formar uma flora intestinal melhor na infância nós também conseguiremos prevenir sintomas do autismo ou mesmo o autismo em algumas crianças predispostas. Mas, ainda é um estudo preliminar e está longe de comprovação”, ressalta o pediatra Marcello Pedreira ao chamar a atenção para notícias falsas sobre as causas do autismo.

“Não se sabe se é genético e não tem nada definido. Existem muitas bobagens dizendo que algumas vacinas podem levar ao autismo, mas, repito, é bobagem. Não tem absolutamente nenhuma comprovação de alguma vacina estar relacionada ao autismo”.

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Os desafios do tratamento no Brasil

Para a Associação Brasileira de Autismo (Abra), o atendimento adequado e especializado (especialmente nas escolas), a inclusão e a falta de centros de reabilitação ainda são os maiores desafios do País no tratamento do TEA. A Abra defende ainda o direito ao acesso à moradia, com a implantação de residências protegidas, conforme prevê a lei 12764 de 27/12/2012 que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.

Nos últimos oito anos, segundo a Coordenadoria da Pessoa com Deficiência do Ministério da Saúde, foram implantados 220 Centros de Referência para pessoas com deficiência no Brasil.

“Mesmo assim, temos a certeza de que a maioria das pessoas com TEA estão sem atendimento, porque os centros de reabilitação para as pessoas com deficiência são poucos e nem todos atendem as pessoas com TEA mais graves”, analisa a presidente da Abra, Maria do Carmo Tourinho Ribeiro.

De acordo com ela, a Associação também reivindica a realização de estudos da prevalência do autismo para elaborar um diagnóstico mais preciso sobre o transtorno no País, já que uma das dificuldades é a ausência de pesquisas e dados mais concretos sobre as pessoas em tratamento.

“O governo não implantou até o momento. É um estudo importante, pois temos que saber onde estão as pessoas com TEA e fazer o atendimento adequado”.

Enquanto a medicina busca avançar nas causas do transtorno e o poder público tenta mapear os autistas para diagnóstico e tratamento mais precisos, a sociedade inteira tem enormes desafios: superar o desconhecimento sobre o transtorno e vencer o preconceito para entender a grandiosidade deste universo paralelo.

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