Postado em 22 de Maio de 2020 às 09h10

Entre a liberdade e o bem comum. A incerteza nos bate à porta

Vida Saudável (34)

Potências econômicas correm para conter a propagação e encontrar soluções para a Covid-19. É assunto nos principais meios de comunicação ao redor do globo. Coronavírus esteve entre as palavras mais pesquisadas na internet. Para além das milhares de mortes, o novo vírus protagonizou memes, piadas misóginas, charges pouco diplomáticas, teorias conspiratórias, debates ideológicos, confrontos políticos.

As mídias sociais geram mais desinformação do que dados de utilidade pública, alimentando ansiedade, pânico, xenofobia e construção de estereótipos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que o surto e resposta ao Covid-19 foram acompanhados por um “excesso de informações - algumas precisas e outras não - que dificultaram o acesso a fontes confiáveis e orientação fidedignas”. A este fenômeno chamou-se infodemia.

Yuval Noah Harari, historiador e filósofo - autor de Sapiens, Homo Deus e 21 Lições para o século XXI – disse, em artigo publicado pela revista norte-americana Time, que os melhores antídotos contra a epidemia são a cooperação e as informações qualificadas.

Em alguns países antes, noutros depois, mulheres, homens, idosos, adolescentes, crianças tiveram de permanecer por mais tempo do que o habitual dentro de suas casas e apartamentos. Com o passar dos dias, vieram à tona questões existenciais. A falta de controle perante a rotina, angústia e o desejo de liberdade tornaram o momento mais intenso. Ninguém estava preparado para enfrentar toda essa insegurança.

Briane Bortolon Lamaison, administradora, e Henrique Stédile, engenheiro agrônomo, pais de Hugo (12), Lucas (8) e Heitor (3), vivem em Itajaí, Santa Catarina. Estão em isolamento desde o princípio. Briane conta que pouco ficavam em casa antes da pandemia. “Moramos num apartamento de 120 metros quadrados - dois adultos, três crianças e uma cadela. Eu e o Henrique nunca tivemos muito tempo juntos, quase não nos víamos por causa do trabalho. O vírus mudou completamente a nossa rotina e planos”. Antes, a família ia à praia, ao clube. Agora, todos foram obrigados a se adaptar ao confinamento. “Os dias parecem todos iguais. Eu preciso de dois momentos para me acalmar: meu banho, sem ninguém bater na porta, e uma hora de atividade física por dia. Faço yoga no meio da sala, com fones de ouvido”, relata Briane.

Complexidades e incertezas

Moisés de Lemos Martins, doutor em sociologia e pesquisador português, relaciona o atual cenário à teoria matemática do caos, “que remete para a incerteza, para as realidades complexas, para a instabilidade e para as consequências inesperadas na nossa vida, decorrentes de uma qualquer alteração do seu curso habitual. O coronavírus não é outra coisa senão o caos, que semeia acaso, imponderabilidade, incerteza e imprevisibilidade na nossa vida”.

À teoria do caos liga-se o provérbio conhecido como “efeito borboleta”: o bater de asas de uma borboleta pode provocar tsunamis do outro lado do mundo. Exageros à parte e de forma resumida, a teoria do caos entende que pequenas mudanças nas condições iniciais de um sistema não-linear, podem gerar alterações significativas à medida que evoluem. Em tempos de mundo globalizado, a disseminação de um vírus numa cidade chinesa, causou instabilidades em aldeias indígenas no interior da Amazônia. Neste momento, o caos permeia o mundo.

Salete Quiroga Duarte Pavin, psicóloga e mestre em Saúde Coletiva, explica que há uma interpretação popular de que pandemia significa bagunça, desorganização. “Neste caso, é uma desorganização real e psíquica. Tivemos que nos reorganizar rapidamente. Nossa vida se tornou uma “pandemia”. Cada um teve que recolher seus pertences do trabalho, correr para casa, proteger a si e sua família do "tal inimigo invisível", afirma Salete.

Diferentes organizações, públicas e independentes, associações, clínicas, psicólogos em rede, planos de saúde, líderes espirituais, prestam atendimento e orientam por meio de cartilhas e vídeos, sobre como manter a saúde mental em períodos de isolamento e crise. Há “gurus do isolamento” realizando transmissões diárias.

Para além do caos social em erupção e de termos de lidar com as dificuldades diárias para manter salários, empregos e saúde, precisamos enfrentar a ansiedade, o medo da morte, as angústias.

Somos finitos. A morte física é uma certeza. Num ritmo normal e saudável, essa ideia passa ao longe. Não é algo em que pensamos com frequência. Contudo, com a pandemia do Covid-19, o medo da morte e do caos invadiram com força a mente de milhares de pessoas. Muito disso em decorrência do excesso de informações sobre a escalada de número de mortos e da difusão de imagens fortes, como valas abertas e necrotérios improvisados.

Esse medo é mais amplo e não está centrado apenas no eu. Temos receio de contaminar os nossos – filhos, companheiros, pais, amigos. Se por um lado é um sentimento ruim, quando não nos paralisa, contribui para a proteção e prevenção de doenças, uma vez que faz com que nos cuidemos mais.

Liberdade como valor

Para a psicóloga Salete Pavin, “outro inimigo passou a existir: a perda de nossa liberdade. Aquela que quando temos, não valorizamos. É uma briga entre o nosso “eu” e aquilo que perdemos”, lembra. Além da privação de liberdade – real ou imaginária - precisamos abrir mão das liberdades individuais pelo bem estar da coletividade.

O Congresso Nacional aprovou em 18 de março, por solicitação do presidente da República, Decreto Legislativo declarando estado de calamidade pública em razão da pandemia. “A Constituição Federal brasileira prevê estados excepcionais em que podem haver restrições a direitos fundamentais, tais como as liberdades públicas (liberdade de locomoção, de expressão, de culto), bem como o direito à privacidade. Um desses casos é o estado de calamidade. Como as restrições estão respaldadas em dados científicos e em pareceres de infectologistas e virologistas, é legítimo e está constitucionalmente justificado restringir liberdades dos cidadãos, a exemplo das medidas voltadas a impor o isolamento social”, explica Silvana Winckler, doutora em Direito.

Ao que parece, muitas pessoas se dispuseram a respeitar as orientações, abrindo mão de sua liberdade individual. Pesquisa do Datafolha divulgada nos primeiros dias de abril, apontou que 71% dos entrevistados era “favorável à que o governo proíba por algum tempo as pessoas, que não trabalham em serviços essenciais, de saírem às ruas a fim de diminuir o contágio pelo coronavírus. Já 26% são contrários à proibição”, afirmava o Datafolha.

O inglês John Stuart Mill, um dos patronos do Liberalismo, estava convicto de que a liberdade suprema é podermos buscar nosso próprio bem, desde que não impeçamos os outros de se esforçarem para buscar o mesmo objetivo. Ninguém teria o direito de impedir esta busca, a não ser para evitar que esse alguém cause danos à outra pessoa. O Liberalismo é uma doutrina política, econômica e social que defende a liberdade individual, a igualdade perante a lei e a redução do poder do estado.

A liberdade é um valor, acima de tudo. Primar pela nossa liberdade é um direito, respeitar a liberdade dos outros é um dever. Permitir que o outro se proteja do vírus é um dever. E podemos fazer isso com medidas simples, respeitando as regras vigentes e as orientações científicas.

O debate em torno das restrições impostas pelos governos mundo a fora, ganha outro patamar quando paramos para pensar em nossos direitos e deveres como cidadãos. Ao seguirmos as recomendações quanto aos cuidados como o uso de máscaras ou higienização das mãos, inconscientemente, incluímos o outro nestes cuidados.

Mudanças vindouras

“Eu diria que o mundo nunca mais será o mesmo. Nós tivemos que nos reinventar como pessoa, como casal, como pais, como avós, como profissionais... Ficamos aprisionados, não por um desejo de estar só, mas por uma imposição necessária pela preservação da vida”, reflete a psicóloga Salete Pavin.

Briane Lamaison conta que a relação familiar mudou muito e, passado o período de adaptação, a convivência melhorou. “Vejo os meus filhos muito mais carinhosos comigo e entre eles. Até brincam mais do que brigam”, ri Briane.

Edgar Morin, sociólogo, antropólogo e filósofo francês conhecido pelos estudos sobre o pensamento complexo, que busca a interconexão de saberes, destaca ao jornal francês CNRS e ao projeto Fronteiras do Pensamento, que chegou a hora da política da humanidade e que o momento pode ser propício para despertar a solidariedade, o amor, a amizade, a comunhão.

O ser humano deu mais atenção à liberdade individual. Talvez a preocupação com o coletivo, com o meio ambiente também ganhe formas mais humanas e menos econômicas. Diversas mudanças virão no pós-quarentena. Não faltam nem faltarão palpites, pontos de vista profissionais, pesquisas científicas. Para além das áreas médicas, as ciências humanas e sociais terão muito o que analisar, pois o mal-estar e as experiências vivenciadas nos dias atuais refletirão em toda as esferas da vida e da sociedade.

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