Postado em 09 de Julho de 2019 às 09h23

A crise das chuvas

Especial (28)

Enchentes acontecem há mais de um século no Brasil e desafiam cidades na busca por soluções

Keli Magri

A enfermeira Sandra Portella ainda lembra com detalhes dos dias de caos vividos pela família em novembro de 2008, em Itajaí, cidade litorânea de Santa Catarina. A chuva forte e contínua no mês fez transbordar o Rio Itajaí-Açu e em questão de horas deixou 85% da cidade submersa e provocou a maior enchente do país, que atingiu 1,5 milhão de pessoas e matou 135 moradores em 60 cidades.

Sandra e a filha Laura estavam em casas separadas, mas na mesma rua, no centro da cidade. A água não chegou a encobrir a região central, mas paralisou a cidade inteira. Por sorte, a família Portella saiu ilesa.

“Nós ficamos quatro dias sem água e sem luz, porque a enchente comprometeu todo o abastecimento. Na nossa rua, a água chegou até o joelho, mas na maior parte da cidade encobriu até o teto e não tinha como se locomover. A gente ficou isolado, sem comunicação, sem saber o que estava acontecendo. Ficamos cinco dias sem sair de casa e quando olhava para a rua, só se via pessoas em canoas e em caiaques, porque não tinha outro jeito de sair”.

Sem abastecimento, as famílias se uniram para não deixar faltar água e comida aos moradores.

“Nestas horas a gente vê que pode contar com a solidariedade. Todos os vizinhos compartilharam o que tinham nas geladeiras, eu fiz pão, outro morador cedeu a água da piscina para limpar as casas. Também, havia pessoas distribuindo garrafões de água potável. Isso me marcou muito”, relata Sandra.

As cenas descritas poderiam ser as mesmas contadas por ‘Sandras’ no Rio de Janeiro, no início deste ano; em Porto Alegre, em outubro de 2015; em fevereiro de 1999, em Curitiba ou em dezembro de 2018, em Belo Horizonte. Mudam os locais e os personagens, mas os fatos se repetem e impõem dúvidas e desafios às cidades que vão muito além da alta precipitação de chuva e de fenômenos naturais: por que as cidades brasileiras ainda convivem com um problema identificado há mais de um século? Quais as soluções buscadas pelo poder público e o que ainda não foi feito para resolver o problema?

As primeiras respostas são técnicas. Está, sim, chovendo mais no Brasil. Este ano está sendo o maior em volume de chuvas dos últimos 10 no país. De acordo com dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), algumas áreas atingiram mais de 50% da média anual climatológica, entre janeiro e março, considerados meses de verão, como leste de São Paulo, extremo-oeste do Rio Grande do Sul, norte da região Nordeste e sudoeste da região Norte. Na maior parte do país, o volume de água ficou entre 200mm e 350mm nos primeiros meses do ano, maior que o registrado em 2017 e 2018, quando a média ficou entre 100mm e 300mm.

Mas, não é só chuva demais. O excesso de água é apenas o estopim de um problema que que está enraizado na ineficiência da gestão pública e nos maus hábitos de consumo urbanos. Para a geóloga, professora do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Maria Lúcia de Paula Herrmann, a falta de planejamento que ignora estudos mais sérios sobre o mapa geológico das cidades, movimentação e ocupação do solo e monitoramento da chuva, somada à grande quantidade de lixo jogado nas ruas e ao desmatamento da mata ciliar formam as principais causas das enchentes e inundações urbanas. As consequências, já conhecemos.

“O poder público precisa adotar medidas fiscalizadoras e punitivas mais eficazes nas áreas que oferecem riscos, muitas delas, delimitadas nos planos diretores dos municípios com mais de 25 mil habitantes, não permitindo urbanização ao longo das planícies de várzeas, bem como, desmatamentos da mata ciliar, e nas encostas, especialmente nas de áreas de preservação permanente”.

O apontamento da geóloga é também a percepção da moradora de Itajaí. Sandra se considera uma mulher de sorte, mas também de juízo. Em julho de 1983, morando em Florianópolis, ela também saiu ilesa de outra grande enchente no Estado: 197.790 pessoas ficaram desabrigadas e 49 morreram em 90 municípios atingidos pelas chuvas.

“O lugar onde eu morava não foi fortemente atingido. Tem pessoas que não podem escolher, mas tem muita gente que constrói suas casas nas margens de rios ou em locais de risco que, com chuva forte, certamente vão sofrer alagamentos. É preciso coibir essa prática”.

O drama e os desafios das médias e grandes cidades

Segundo levantamento do Instituto Igarapé, do Rio de Janeiro, ao menos 7,7 milhões de brasileiros foram forçados a se deslocar nos últimos 18 anos. Dentre eles, 6,4 milhões ficaram desabrigados ou desalojados por desastres naturais, o equivalente a um a cada dois minutos.

O levantamento do instituto é baseado em informações reportadas pelas Defesas Civis de estados e municípios ao governo federal, por meio do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), publicado pela Folha de São Paulo em março do ano passado.

Os números atestam o agravamento do problema das enchentes no país, que levou o governo federal a lançar em agosto de 2012 o plano contra os desastres naturais para auxiliar financeiramente estados e municípios em obras de infraestrutura contra inundações e deslizamentos. Foram R$46 bilhões aplicados até 2014.

Desde a maior tragédia em 2008, o estado com mais registros de enchentes no Brasil precisou inverter as prioridades e investir mais em prevenção. Santa Catarina construiu barragens de contenção no Vale do Itajaí, três radares meteorológicos instalados nas regiões Oeste, Vale, Sul do Estado e criou o Centro de Operações Integradas com todas as áreas do governo e organizações. O investimento em tecnologia permitiu emitir alertas de tempestades à população pelo celular, conter inundações provocadas pelos principais rios e agilizar as respostas por meio da unificação dos trabalhos dos setores responsáveis pelas ações na área.

De acordo com o Atlas de Desastres Naturais de Santa Catarina, de autoria da geóloga da UFSC, Maria Lúcia de Paula Herrmann, o Estado registrou 1.257 inundações bruscas entre 1982 e 2010, aumento de 56% no período. 

“Muitas medidas foram e estão sendo tomadas para conter e ou minimizar esses desastres. Porém, as principais seriam a elaboração de mapas de suscetibilidade a riscos de inundações, evitar assentamentos urbanos desordenados, notificação e desocupação de áreas de risco e a elaboração de cartilha educativa, para serem distribuídas à população orientando quanto à necessidade de preservação do ambiente”, assinala a geóloga.

Já no Rio de Janeiro, o investimento na área reduziu nos últimos anos. Segundo o atual governo, faltam recursos para obras prioritárias como realocar pessoas que moram em áreas de risco para locais mais seguros e construir novos reservatórios subterrâneos (piscinões) para escoar enchentes.

“No Brasil, piscinões são construídos desde a década de 1990, como solução para reduzir o efeito de enchentes e inundações em áreas densamente urbanizadas, e sem capacidade para aumento de canais de drenagem. Eles permitem controlar os volumes de chuvas pelo controle das vazões que circulam em suas estruturas. Também, permitem o aproveitamento da água da chuva”, observa Herrmann.

O Estado do Rio Grande do Sul criou em 2015 o Plano de Combate e Prevenção às Cheias e investiu em medidores nos municípios para prevenir enchentes, além de obras de contenção nas três bacias hidrográficas da Região Metropolitana de Porto Alegre.

Em Minas Gerais, a capital Belo Horizonte foi a cidade do Estado que mais investiu no combate e prevenção de enchentes, com obras de recuperação dos rios, drenagem dos córregos, contenção nas bacias hidrográficas e construção de túneis para sugar a água da chuva.

São medidas adotadas pelas cidades que minimizam o impacto das cheias e resolvem de forma paliativa o problema de enchentes e inundações. Porém, existe uma solução definitiva?

Menos concreto, mais áreas verdes

As causas das enchentes e inundações apontadas são resultados da urbanização acelerada. É o que alerta o doutor em Engenharia Florestal, Masato Kobiyama, professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e especialista em Controle de Erosão pela Universidade de Quioto (Japão).

“As cidades, grandes ou pequenas, acham que o concreto é sinônimo de modernização, de desenvolvimento. O problema é que o concreto não absorve e não drena água”, aponta o professor.

Tanto para ele quanto para a geóloga, a solução está no planejamento urbano que contempla mais verde e menos concreto.

“As cidades precisam investir na criação de parques, com mais áreas verdes e de lazer. Esta é uma forma mais eficaz de drenagem da água das chuvas”, indica a geóloga.

“Eu chamo de ruralização das cidades. Em vez de controlar a função da natureza, você busca a força dela. Por exemplo: se você for construir uma casa de 500 m², por que colocar só azulejo? Por que não colocar grama? O solo é uma esponja natural. Enquanto no azulejo, a água bate e vai direto pra rua, na grama, ela é absorvida. Mesmo que seja um prédio, em área reta, a agricultura urbana vai ajudar a absorver a água e evitar alagamentos. São pequenas coisas que, se forem feitas de pontinho em pontinho no mapa, aos poucos melhora a cidade toda, aumentando a área permeável”, sugere Masato.

Quando o assunto é ações públicas, o professor cita como solução a mudança de postura diante de um problema que não vai deixar de existir.

“Não há lugar na superfície da terra para tanta água quando a chuva é forte e contínua. Você pode resolver o problema em um local, mas este problema será transferido para outro local mais baixo, porque a água não desaparece. Por isso, ao fazer o estudo e o planejamento, os comitês de bacias nos municípios devem buscar um equilíbrio, resolver o problema de uma forma melhor distribuída, um pouco em cada lugar”, alega Masato ao apontar medidas que podem ajudar a prevenir os danos, mas que ainda são tímidas no Brasil.

“Já existem cidades que estão trocando o concreto pelo concreto poroso, que é permeável, metade barro e metade concreto. Funciona como esponja, igual ao solo, só que é mais resistente. Outras usam pavers no lugar do asfalto. Criciúma (SC) e São Carlos (SP), por exemplo, são cidades que investiram na arborização e na renaturezação dos rios para canalizar e diminuir a velocidade da água. O caminho, certamente, está na natureza, na ruralização das cidades”.

Cidades inovam em soluções no mundo

Cidade-Esponja na China

Se o Brasil ainda encontra problemas para conter os estragos das enchentes, países como China, Alemanha, Holanda, Canadá, Austrália e Espanha estão bem avançados no tema, de olho no aquecimento global e nas mudanças climáticas.

A China, segunda maior economia mundial que sofre com a poluição do ar, está investindo em “cidades-esponjas”, que têm sistemas de drenagem especiais e áreas verdes para absorver a água do solo e guardá-la para o futuro. Já são 16 delas no país. Segundo o regulamento do projeto, 20% das áreas urbanas das cidades-esponjas selecionadas terão de ser capazes de absorver e armazenar 70% das águas pluviais até 2020.

As cidades-esponjas são cobertas de verde. As construções públicas, condomínios residenciais e parques industriais possuem tetos verdes ou jardins nas coberturas das construções para absorver a chuva, além de instalações de purificação e reciclagem. A ideia consiste em manter a chuva onde ela cai, em vez de escoar, simulando o ciclo natural da água. Assim, a água da chuva é absorvida pelo solo e pela vegetação, e uma grande parte evapora em seguida, resfriando o ambiente.

A China também se prepara para entregar em 2020, a primeira cidade 100% sustentável, chamada de “cidade floresta”. Com 175 hectares, construída em três anos, a cidade receberá 40 mil árvores e quase um milhão de plantas de mais de 100 espécies diferentes. A vegetação colocada sobre as fachadas de todos os edifícios promete melhorar a qualidade do ar, diminuir a temperatura média e criar barreiras naturais contra os ruídos.

A expectativa é que a "cidade floresta" seja capaz de produzir, em um ano, aproximadamente 900 toneladas de oxigênio, além absorver quase 10 mil toneladas de dióxido de carbono e 57 toneladas de poluentes. O projeto ainda contribuirá para a biodiversidade da região, com habitats para aves, insetos e pequenos animais.

Projetada pelo arquiteto italiano Stefano Boeri, a nova metrópole verde deve ficar em Liuzhou e acomodar cerca de 30 mil pessoas, com casas, hotéis, escritórios, hospitais e escolas.

A capital da Alemanha, Berlim, também se tornou cidade-esponja, com mais árvores e toldos nas calçadas para proporcionar sombra; telhados cobertos com musgo e grama; edifícios pintados com cores claras, que refletem mais calor do que absorvem; pavimentação de estradas especial, resistente ao calor, para prevenir o derretimento do asfalto em dias muito quentes; charcos urbanos e mais áreas permeáveis para absorver e armazenar a água das chuvas. A Alemanha também construiu o maior condomínio sustentável do mundo, com 162 apartamentos, uma usina solar própria e jardins verticais.

Na Holanda, para resolver o problema dos moradores com o aumento do nível do mar e dos rios, o país construiu casas flutuantes. As estruturas das casas são formadas por blocos de concreto preenchidos com isopor e considerados insubmergíveis. Na capital Amsterdã, foi projetada em 2011, a ilha de Steigereiland (ilha dos Ancoradouros), que é um bairro flutuante com 43 residências ligadas a quatro ancoradouros, como barcos em portos.

E se essas ideias pudessem ser implantadas no Brasil? Apesar de algumas cidades já investirem em projetos mais sustentáveis, por enquanto, isso ainda é um sonho.

Enchente em 2010 no Alto Vale do Itajaí, SC (Lúcio Rila)

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